sexta-feira, 3 de setembro de 2010

A Origem e Evolução das Espécies segundo Santo Agostinho



Por : Alister McGrath






O ano de 2009 marcou o bicentenário do nascimento de Charles Darwin e os 150 anos da publicação de seu célebre livro A origem das espécies. Muitos debates acerca da obra do naturalista britânico ganharam corpo. Para inúmeros estudiosos, o darwinismo, baseado na concepção da aleatoriedade do surgimento da vida e em sua capacidade de evoluir, eleva-se da categoria de simples teoria científica para uma verdadeira visão de mundo, uma forma de ver a realidade que exclui Deus permanentemente. Já outros reagem fortemente contra os apologistas do secularismo. O fundamentalismo ateu, eles argumentam, tem usado teorias científicas como armas em sua guerra contra a religião. Eles também temem que as interpretações bíblicas estejam se adaptando às teorias científicas modernas. Certamente, dizem, a Criação narrada em Gênesis deve ser interpretada literalmente, como um relato histórico do que realmente aconteceu. Por outro lado, muitos evangélicos de hoje temem que os modernistas abandonem a longa tradição de uma exegese bíblica fiel. Eles dizem que a Igreja sempre tratou o relato da Criação como uma história clara do surgimento das coisas. Entre os dois extremos, a autoridade das Escrituras parece estar em jogo.


O aniversário de Darwin é um convite a olhar o assunto em perspectiva. Afinal de contas, desde que ele formulou suas teses após a épica viagem a bordo do navio Beagle, muita coisa mudou – no entanto, o evolucionismo continua sendo a tese mais universalmente aceita para explicar o surgimento da vida no planeta. E o relato bíblico da Criação, que durante séculos a fio embasou qualquer estudo acerca do tema, tem sido constantemente posto em xeque não apenas pela modernidade, mas por muitos estudiosos cristãos, que enxergam ali muito mais um compêndio religioso do que uma narrativa confiável. Na história da Igreja, o assunto sempre suscitou controvérsia, e a mera aceitação da literalidade bíblica em relação às origens sempre foi questionada. O teólogo, professor e bispo Agostinho de Hipona (354-430), embora tenha interpretado a Escritura mil anos antes da Revolução Científica, não tinha problemas em relação às controvérsias sobre as origens. O mais marcante em sua trajetória é que ele não comprometeu a interpretação bíblica para acomodá-la às teorias vigentes em seu tempo. Para Agostinho, o mais importante era deixar a Bíblia falar por si mesma.



Há pelo menos quatro pontos nos seus escritos em que tenta desenvolver um relato sistemático de como aquela passagem deve ser entendida – e cada um é sutilmente diferente um do outro. Em O significado literal de Gênesis, comentário escrito durante quatorze anos no início do século 5, Agostinho deixa clara sua crença de que Deus trouxe todas as coisas à existência em um só momento, ainda que a ordem criada não seja estática. Ou seja, o Criador teria dotado as criaturas com capacidade de desenvolvimento, como uma semente, cuja vida está contida em si, mas só se desenvolve e cresce no momento certo. Usando uma linguagem mais técnica, Agostinho incita seus leitores a pensar sobre a ordem criada como algo que contém casualidades divinas ocultas que só emergirão futuramente. É que até aquele momento o bispo não tinha noção de acaso ou de mudanças arbitrárias na obra divina. O desenvolvimento da Criação está sempre sujeito à soberana providência de Deus, que não apenas cria a semente, como direciona o tempo e o lugar do seu crescimento.Agostinho argumenta que o primeiro relato sobre a Criação não pode ser interpretado isoladamente, mas deve ser entendido ao longo da segunda parte, descrita em Gênesis 2.4-25, e também por qualquer outra narração sobre o tema nas Escrituras. Por exemplo, ele sugere que o Salmo 33.6-9 – cujo resumo é “Pois ele falou, e tudo se fez” – menciona a origem instantânea do mundo através da palavra criadora de Deus, enquanto o texto de João 5.17 (onde Jesus diz “meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também”) aponta que o Senhor ainda está agindo na Criação. Além disso, ele enfatiza que uma leitura detalhada dos primeiros textos bíblicos aponta que os seis dias da Criação não são períodos cronológicos delimitados, e sim, uma forma de categorizar o trabalho criador de Deus. Em síntese, Agostinho cria que o Senhor criou o mundo em um instante a partir de sua vontade, mas continua a moldá-lo, mesmo hoje em dia.



O bispo de Hipona estava preocupado de que os intérpretes estivessem fechados às novidades cientificas quando liam a Bíblia, fato que gerou conflitos mais de dez séculos depois, quando Copérnico desafiou a crença tradicional de que o Sol é que girava em torno da Terra, e não o contrário. O detalhe é que, em pleno século 16, a Igreja interpretou a teoria heliocêntrica como um desafio para a autoridade da Bíblia. Não era, com certeza, e constituiu-se em mais um desafio para que se interpretasse a Palavra de Deus de maneira mais ampla – uma interpretação com urgente e constante necessidade de revisão. Já no seu tempo, Agostinho preconizava que algumas passagens bíblicas estão abertas para diversas interpretações e não devem se casar com as predominantes teorias científicas. Por outro lado, a Bíblia se torna prisioneira do que um dia foi considerado uma verdade cientifica: em assuntos tão obscuros e distantes da nossa visão, nós encontramos nas Sagradas Escrituras passagens que podem ter várias interpretações sem que a fé que um dia recebemos seja prejudicada.



Essa aproximação de Agostinho fez com que teólogos não caíssem numa visão pré-científica do mundo, e o ajudou a não se comprometer em face das pressões culturais, que eram enormes. Por exemplo, muitos pensadores contemporâneos consideraram incoerente a visão cristã sobre a criação ex nihilo (do nada). Cláudio Galeno, médico do então imperador romano Marco Aurélio, por exemplo, rejeitou isso como uma lógica e metafísica absurda. Agostinho argumenta também que o tempo faz parte da ordem criada. Ou seja, no seu entender Deus criou espaço e tempo juntos, e este último só existe dentro do universo criado. Para alguns, porém, a ideia de que o tempo tenha sido criado parece ridícula.



Novamente aqui, Agostinho se opõe à ideia de que a narrativa bíblica não pode ter interpretações alternativas. Assim, o tempo deve ser visto como uma das criaturas e servos de Deus; por outro lado, a infinidade é uma característica essencial da eternidade. Mas a esta altura surge uma dúvida essencial: então, o que Deus estava fazendo antes da criação do universo? Para o teólogo, o Senhor não trouxe a criação à existência num momento especifico, pois o tempo não existia antes da Criação. Interessante, pois é exatamente esse o estado da existência, o chamado Caos, que muitos cientistas defendem ter havido antes do Big Bang, a gigantesca explosão que, há mais de 13 bilhões de anos, teria dado origem ao universo. Agostinho poderia até estar errado ao afirmar quer a Escritura ensina claramente que a Criação foi instantânea. Os evangélicos creem, apesar de tudo, na infalibilidade da Escritura, não na infalibilidade das interpretações. Como alguns nos lembram, o próprio Agostinho não era constante nas suas convicções acerca das origens. Outras posições certamente existem – por exemplo, a ideia de que os seis dias de Criação, mencionados no Gênesis, foram seis períodos de 24 horas, ou a tese de que eles representam, na verdade, seis extensos períodos, cada um deles com seus milhões de anos. Todavia, a posição de Agostinho nos obriga a refletir sobre essas questões, mesmo que achemos que ele estava errado – e aí está um dos motivos da relevância de seu legado.



Afinal de contas, quais são as implicações dessa antiga interpretação bíblica sobre as afirmações de Darwin? Primeiro, Agostinho não limita os atos de criação à Criação inicial. Deus ainda está, ele insiste, trabalhando com o mundo, direcionando seu continuo desenvolvimento e expandindo seu potencial. Para ele, há dois “momentos” na Criação: aquele primordial e um contínuo processo de direcionamento. Logo, a Criação não é um instante circunscrito ao passado remoto. O Senhor continua trabalhando no presente, ele escreve, sustentando e direcionando o sucessivo desabrochar das gerações. Esse duplo foco sobre a Criação permite ler Gênesis de uma forma que afirma que Deus criou todas as coisas do nada. Porém, isso também nos permite afirmar que o universo foi criado com a capacidade de evoluir, sob a soberana direção de Deus – dessa forma, o primeiro estágio da Criação não corresponde ao que vemos agora.



Para Agostinho, o Senhor criou um universo deliberadamente designado para se desenvolver e evoluir. E o plano para essa evolução não é arbitrário, mas programado na estrutura de tudo quanto foi criado. Os primeiros escritores cristãos tomaram nota de como o primeiro relato do Gênesis falava sobre a terra e a água dando origem à vida. Eles diziam que isso mostra como Deus dotou a ordem natural com a capacidade de gerar criaturas. Agostinho foi ainda mais longe: ele sustentava que Deus criou o mundo com uma série de poderes adormecidos, que são consumados em um certo momento, de acordo com a divina providência. Uma das evidências disso seria o texto de Gênesis 1.12, que sugere que a terra recebeu o poder de produzir vida por si mesma. A imagem da semente, ali mencionada, sugere que a Criação original contém em si mesma o potencial de fazer emergir todos os subsequentes tipos de vida. Isso não significa que Deus criou o mundo incompleto e imperfeito, como pretendia Darwin ao enfatizar a necessidade da evolução; esse processo de desenvolvimento, Agostinho declara, é governado por leis fundamentais, que revelam a vontade do Criador: “Deus estabeleceu leis fixas que governam a produção das espécies de seres, e os tira do esconderijo para serem vistos completamente”, diz em seu comentário.



Por outro lado, enquanto alguns podem entender a Criação como Deus inserindo novos tipos de plantas e animais num mundo já existente, Agostinho considera isso uma incoerência com o resto das Escrituras. Antes, o Senhor deve ser visto como o criador, naquele primeiro momento, da potencialidade de todas as coisas vivas que iriam surgir depois, incluindo a humanidade. Isso significa que o primeiro relato das Sagradas Escrituras descreve o instantâneo surgimento da matéria primitiva, incluindo os recursos para o desenvolvimento futuro. O segundo relato explora como essas possibilidades casuais surgiram e se desenvolveram na terra. Na visão agostiniana, esses dois relatos sobre a Criação revelam que Deus criou o mundo instantaneamente, enquanto imaginava que as outras espécies de vida iriam aparecer gradualmente durante os tempos.



Em posição diametralmente oposta à de Charles Darwin, Agostinho rejeitaria qualquer idéia do desenvolvimento do Universo como um processo aleatório e desprovido de leis. Por isso, ele teria se oposto à visão darwinista de variação casual, insistindo que a providência de Deus está profundamente envolvida no desenvolvimento da vida. O processo pode ser imprevisível; casual, nunca. Previsivelmente, Agostinho aproxima o texto da pressuposição cultural prevalente da fixação das espécies, e não viu nisso algo que desafiasse seu pensamento sobre esse assunto – apesar de a maneira com a qual ele critica as autoridades contemporâneas e de sua própria experiência sugerir que, pelo menos nesse assunto, ele estaria aberto a correções mediante a luz de descobertas cientificas.



O significado literal de Gênesis realmente nos ajuda a lidar com as questões levantadas por Darwin? Vamos deixar claro que a obra de Agostinho não responde esses questionamentos; todavia, nos ajuda a ver que o real problema não é a autoridade bíblica, mas sua interpretação. Além disso, ele oferece uma maneira clássica de pensamento que ilumina muitos debates ainda hoje, quase 1,6 mil anos após sua morte. Nesse assunto, Agostinho nem é liberal nem acomodado; mas totalmente bíblico, tanto no sentido quanto na intenção. Nós precisamos de paciência, generosidade e graça para refletir sobre essas grandes questões. E Agostinho pode nos ajudar a começar.

























Alister McGrath

Retirado da Revista " Cristianismo Hoje ",

10 comentários:

  1. oiii, andre.

    então. dizer que o proprio Darwin achava que o universo tinha sido criado num processo aleatório e desprovido de leis é equivocado. ou não.

    explico. eu nunca li nem ouvi falar o que darwin achava do surgimento do universo. sei que ele se interessava muito por geologia mas sobre "astro fisica" eu realmente não.

    dizer que darwin achava isso da seleção natural , então, seria absolutamente absurdo. a seleção natural é o não-acaso, a não-aleatoridade.
    mas daí a pensar numa consciencia ordenadora por tras disso vai alem da minha capacidade.

    não por achar que deus não fosse poderoso o suficiente pra colocar a seleção pra rodar e tal.e até consigo conceber isso. mas fico pensando na enorme quantidade de especies que ja foram extintas, q foram negativamete selecionadas, q foram convidadas a desaparecer da face da terra e penso: cara, pq deus disperdiçou tanto material se ele sabia o que queria? pobre animais. pobre dinossauros.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi Rayssa, sobre o fato de Deus "desperdiçar" todo esse material biológico, na verdade eu vejo como uma bela história, que Ele escreveu, com personagens que entram e saem de cena, deixando um legado genético, e um passado deslumbrante a ser descoberto. Um ciclo de vida, morte e renascimento que demonstram o quanto o período em que vivemos é valioso e não pode ser desperdiçado. Apenas um aviso de que nossa vida é um momento milagroso e passageiro, por isso devemos aproveitá-la ao máximo, afinal de contas, somos todos parte dessa natureza fantástica, e no final, caminhamos todos para um lugar desconhecido depois da morte. ;)

      Excluir
  2. Olá Rayssa. Esta questão, de Darwin achar, ou não, que o universo tenha surgido de forma aleatória, ou desprovido de leis, é bastante controversa. Já li autores que defendem esta idéia, caso do McGrath. Também já li outras opiniões que se chocam frontamente com esta opinião. Eu, particularmente, me inclino a achar que McGrath comeu bola, a saber a existência de uma frase " religiosa " atribuida ao próprio Darwin e citada por mim no artigo que escrevi sobre evolução teísta.

    Gosto muito do Alister, o diálogo que ele faz entre ciência e teologia, assumindo uma posição conservadora mas não fundamentalista, é bárbaro . Esta explicação que ele faz da evolução em Agostinho, na minha modesta e insignificante opinião, é genial. Mas, assim como nesta questão referende a Darwin, o irlandês escreveu algumas prováveis besteiras.
    Um exemplo; quando ele faz algum comentário sobre a relação do marxismo com a crença religiosa, ele se refere ao marxismo ortodoxo, aquele que é claramente anti-religioso, como sendo regra geral, quase nunca citando pensadores marxistas que, apesar do claro ateísmo, consideram a crença religiosa, principalmente o cristianismo, como potencialmente revolucionária ( Luxemburgo, Bloch, Machovec, From, Garaudy e etc..). Em suma, comete um grande revisionismo.

    No tocante ao McGrath, sou igual vc diante do Dawkins...gosto muito, mas quando come bole, é criticado.

    A respeito da sua última colocação; " mas fico pensando na enorme quantidade de especies que ja foram extintas, q foram negativamete selecionadas, q foram convidadas a desaparecer da face da terra e penso: cara, pq deus disperdiçou tanto material se ele sabia o que queria? pobre animais. pobre dinossauros ". Muito boa. É para se pensar. Confesso, não tenho resposta para isso. Realmente é bastante chocante. Mas, se eu fosse um fundamentalista, com certeza teria, afinal, eles possuem respostas para tudo, mesmo que sejam absolutamente exdrúxulas.

    Forte Abraço

    PS : Que coisa, desde que publiquei este texto e o que aborda a questão do casamento perdi seguidores. Pq será ?rss

    ResponderExcluir
  3. Ah, estava me esquecendo. O que acho fantástico é o fato de uma pessoa como Agostinho, lá no século V, ter tido uma idéia que, a despeito de suas falhas, seja tão próxima ao conceito evolutivo das espécies. Claro, como teólogo, ele coloca Deus no processo, uma questão que um cientista, no momento em que está fazendo ciência, não deve considerar.

    No entanto, a idéia de Agostinho é um tapa na cara de algumas pessoas que dizem que os ditos " cristãos liberais(sic ?)", que aceitam o chamado evolucionismo teísta, são incoerentes, que apenas mudaram o discurso, visando uma maior participação e relevância no novo mundo secular.
    Não ! A idéia de uma evolução, mesmo sem os conhecimentos atuais que dispomos, sempre se fez presente no pensamento cristão. Agora, se os fundamentalistas são cegos, se ficam presos em um literalismo criacionista ou na piada do design inteligente,seria bom um pouco de Santo Agostinho neles....

    ResponderExcluir
  4. Olá, André!!!

    Interessante, falei sobre esse asssunto ainda essa semana!
    Como Sto. Agostinho era a frente de seu tempo! Não conhecia esse esutdo, é incrivelmente atual!

    Apesar de nunca ter comentado, sempre acompanho seu blog, colega!!
    'Tamo junto' na militância e na busca de um cristianismo inteligente!!!

    Super bjo!!

    (viu? escrevi!! agora me deve uma cerveja! =)

    ResponderExcluir
  5. sinto sobre seus seguidores q se foram. é o que eu sempre digo: se as pessoas parecem te odiar sem motivo alguma, de-lhes a p*** de um motivo!

    vc é provocador, andre? entende? isso é normal.

    eu vivo perdendo seguidores no twitter, tipo, do nada.


    desculpe o sumiço mas o bule tem me sugado tempo, a faculdade. sabe como é. mas, pra te falar: o indice do seu TCC até me deixou arrepiada. eu tava pensando em pedir um arquivo, mas quero um exemplar. vc vai ter alguma banca or something??? faço questão de ir, se eu puder entrar, claro.

    beijo

    ResponderExcluir
  6. Realmente perdi seguidores, mas outros apareceram. Inclusive além-mar. Chique, não ?

    Quando estiver pronto, querendo Deus lá para meados de outubro, terei o maior prazer em enviá-lo.

    A respeito da banca, ela é aberta. Portanto, sinta-se convidada.

    Forte Abraço

    PS : Eu, provocador ? Não divulgo nem metade das coisas que penso. Sabe como é, a futura " carreira" eclesiástica pede um pouco de moderação.
    eclesiástica

    ResponderExcluir
  7. Após um tempo sem poder acompanha o blog, eis que me deparo com este texto!
    Genial!

    ResponderExcluir
  8. Juan, eu queria ter escrito. É McGrath, meu caro ! Tirando umas pisadinhas de bola, o cara é genial !

    ResponderExcluir